quinta-feira, 24 de março de 2016

O Homem da Ladeira

As mãos molhadas de suor frio tremiam sem cessar. O olhar vazio de Amora indicava o tamanho susto que levara ainda há pouco. Maria Helena correu para o portão velho de madeira que dava de frente para a rua de terra, estava preocupada e curiosa para saber porque a filha estava naquele estado. Ao olhar a pequena estrada de chão batido, percebeu nada mais que rastros. Era comum os homens saírem a cavalo pra pescar no Rio Escuro aos fins de semana enquanto as mulheres cuidavam dos filhos, o que não acontecia com a família de Maria, composta por cinco mulheres.

- O que você viu, Amora? Desembuche! - perguntou a mãe após voltar intrigada.

- A carroça, eu vi a carroça de novo. Dessa vez eu juro que é verdade.

Helena revirou os olhos. Naquela casa ninguém mais aguentava ouvir Amora dizer que tinha visto uma carroça descer a enorme ladeira, essa lenda já estava ultrapassada para todos os moradores de Poço Fundo. O relógio ali batia sempre às onze da noite, horário para todas irem dormir. Lucuma, a irmã mais nova, dormia num colchão ao lado da cama de Amora, e todas as noites quando todos já estavam dormindo, pedia pra ouvir histórias.

- Maninha, o que você vai contar hoje?

- É você que sempre escolhe, Lu, é só dizer o que quer ouvir.

- Você pode me contar o que aconteceu hoje? A mamãe disse que não é coisa pra criança, mas eu já tô com nove anos! - disse emburrada!

- Tá, eu conto, mas você tem que prometer que ninguém vai ficar sabendo disso... promete? A irmã acenou que sim com a cabeça.

- Bom, há muitos anos atrás, quando a cidade ainda se chamava Morgélia, havia uma enorme casa que beirava a curva do Rio Escuro. Pertencia à Santol e Tâmara, um casal estranho que emprestava a casa para a dona de uma clínica para pessoas com necessidades especiais. O casal dormia no quarto mais alto da casa, separado do resto por correntes e enormes placas de aviso para não ultrapassarem. Qualquer pessoa que passasse dali desaparecia para sempre, seja paciente ou enfermeiro. Dizem que em um dia gélido e nebuloso, Massala, uma jovem com síndrome de down, saiu para dar uma volta por um dos locais proibidos sem saber. Brincou por todo o espaço até que seu pé afundou em um alçapão podre. Curiosa como toda adolescente, começou a puxar a tampa para ver o que tinha ali, mas desistiu quando sentiu o cheiro de carne estragada. Prendeu a respiração e pisou com força para terminar de quebrar.

- O que ela viu? - perguntou Lucuma com o olhar assustado e as mãos agarradas às cobertas.

- Você não ia querer saber dessa parte, vá dormir!

- Por favor, Amora, por favor.

Amora bufou e continuou:

- Ela viu dezenas de cabeças decepadas e colocadas para cima. Os buracos negros dos olhos arrancados pareciam penetrar na mente e alma. Os corpos, pelo que dizem, eram amontoados em uma velha carroça de madeira com rodas grossas, puxada por dois enormes cavalos pretos que estavam sempre bem cuidados. Baru, o escravo dos donos da casa, carregava esses corpos ladeira a baixo, até encontrar a parte mais funda e traiçoeira do rio para jogá-los.

Lucuma já quase não prendia as lágrimas de medo. Amora percebeu e parou.

- Desculpa, eu não queria que ficasse com medo, você disse que já era crescida.

- Eu não estou com medo! - disse ela tentando provar a coragem para a irmã. - Por que eles faziam isso com as pessoas?

- Guardavam a cabeça dos desobedientes pois achavam o gosto do cérebro mais saboroso. Quanto aos olhos... bom, os olhos eram espalhados por todos os lugares da cidade. A lenda diz que é para os espíritos nunca descancarem, para sempre ficarem de olho em quem desobedece e levar estes para a Casa Morta. E foi isso que eu vi, maninha. Vi o homem negro passando com uma carroça carregada de corpos pela nossa rua. Ele enfiava sua mão suja de terra dentro de um saco de pano e tirava um punhado de olhos, alguns foram jogados no nosso quintal.

- CHEGA! - gritou Lucuma, um pouco engasgada pelo choro. - EU NÃO QUERO MAIS OUVIR!

Maria Helena entrou no quarto com o lampião aceso.

- Que palhaçada é essa? Já não vêem que passa de meia noite? Já para a sala, Lucuma, deixe sua irmã dormir em paz e não volte nesse quarto.

Naquela madrugada todos dormiram como pedras. Amora foi a primeira a levantar. Foi direto pra cozinha, fez o café e voltou para acordar as irmãs. Ao passar pela sala percebeu que Lucuma não estava lá. Revirou a casa toda, exceto seu quarto, pois sabia que ela não estava lá. Sabia que se acordasse sua mãe, a casa ia tremer com os gritos de desespero, e provavelmente levaria a culpa. A passos rápidos foi para o quarto e deu uma olhada. Olhou para o chão e viu um pequeno rastro vermelho que escorria debaixo de sua cama. A cabeça de Lucuma estava virada para cima, com a boca entreaberta e os olhos arrancados, fixados em um ponto morto.

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